Garra, sacrifício e luta. Não há como pensar em basquete feminino no Brasil e não lembrar da história de Hortência Marcari. Uma das líderes da geração de estrelas que incluía nomes como Magic Paula e Janeth Arcain, a paulista de Potirendaba beirou o impossível dentro e fora de quadra. Anotou impressionantes 121 pontos em uma única partida, pelo Sorocaba, e conquistou a prata olímpica inédita, em Atlanta 1996, apenas cinco meses após dar à luz. Hoje, aos 64 anos, ainda está diretamente envolvida com o esporte. Em entrevista exclusiva ao ge, a ex-atleta reviveu os momentos emocionantes da carreira e ressaltou a importância de um projeto que cuide das categorias de base. Também avaliou as chances de pódio da seleção masculina nas Olimpíadas de Paris.
“A medalha de ouro, na minha opinião, já é dos Estados Unidos. E aí há vários times brigando. Quero ver como o Brasil vai começar, como França, Grécia e outras equipes jogarão. Cada time tem um craque. Assisti ao amistoso entre Estados Unidos e Canadá. Por que os EUA ganharam? Por causa do banco. Você tira um jogador e põe um melhor ainda. Os outros times não têm essa quantidade de atletas bons para fazer esse revezamento.”
“Não quero chutar. Acho pódio difícil, mas, se o Brasil jogar como contra a Letônia, no Pré-Olímpico, vai longe. Tem um time muito legal, tem banco. Estou torcendo muito por esses meninos, quero que cheguem o mais longe possível. E por que não subir ao pódio? É um sonho palpável.”
As palavras são de quem tem muita experiência com a camisa do Brasil. Aos 16 anos, a “Rainha do basquete”, como Hortência ficou conhecida, já fazia as primeiras cestas pela equipe nacional. Conquistou títulos importantes, como o ouro nos Jogos Pan-Americanos de Havana, em 1991, e o Mundial da Austrália, em 1994. Disputou duas edições de Olimpíadas: Barcelona 1992 e Atlanta 1996. Virou a maior cestinha da história da seleção feminina, com 3.160 pontos em 127 partidas oficiais. Aos 36 anos, logo após a prata olímpica, se aposentou de forma definitiva.
Aquela, no entanto, não era a primeira aposentadoria de Hortência. Grávida de João Victor, nascido em fevereiro de 1996, ela tinha anunciado que pararia de jogar para viver o sonho da maternidade. A chance de conquistar uma medalha olímpica, no entanto, chamou a Rainha de volta às quadras. Com muito sofrimento, tirou o filho recém-nascido do peito para disputar os Jogos de Atlanta. A escolha dolorosa foi compensada com o tão sonhado pódio nos Estados Unidos.
“Eu tinha dito: ‘estou parando a minha carreira, não vou jogar mais’. Informei ainda que estava grávida, um sonho que realizava. Quando o João nasceu, começou aquela coisa de ‘você tem que voltar’. Fiquei pensando ‘e se elas ganharem uma medalha e eu não estiver lá?’. Não ia deixar essa medalha escapar da minha mão. Eu tratei de voltar logo e mandei ver.”
O primogênito, João Victor Oliva, tornou-se atleta de hipismo adestramento e, aos 28 anos, disputará a terceira edição de Olimpíadas da carreira. A mãe, emocionada, conta que chegou a interromper uma transmissão ao vivo, como comentarista, de tanto chorar ao vê-lo competir nos Jogos do Rio de Janeiro. Hortência ainda tem outro filho, Antônio, nascido em maio de 1997.
Das lembranças do tempo de jogadora, a ex-ala se arrepia ao lembrar da abertura de Barcelona 1992 e exibe com orgulho as duas edições olímpicas tatuadas na pele. Para ela, a prata em Atlanta teve gostinho de ouro. Incansável, Hortência, a primeira brasileira a entrar no Hall do Fama do basquete, em 2005, pede projeto e patrocínio para as seleções, mas não deixa de sonhar.
A sua história com as Olimpíadas foi escrita dentro e fora das quadras de basquete. O que espera da edição de Paris?
Hortência: Meus últimos Jogos já têm muito tempo, participei em 96, ganhamos uma medalha de prata. De lá pra cá, venho fazendo Olimpíadas como comentarista. Agora, estou vivendo um momento de muita expectativa para ver meu filho desfilando. A maior emoção que um atleta pode receber – fora a participação na competição – é o desfile de abertura.
Quais as lembranças da época de atleta nas Olimpíadas?
Ficamos uma vida inteira tentando classificar o Brasil pela primeira vez para as Olimpíadas (no basquete feminino). Aos 45 do segundo tempo, quando eu já tinha mais de 30 anos, conseguimos (para Barcelona 1992). Foi uma alegria indescritível. É uma honra poder tatuar os aros olímpicos. É dizer “cheguei ao auge, estou realizada”. Só tatua quem participa das Olimpíadas. Óbvio que qualquer um pode fazer, mas é a mesma coisa que comprar uma medalha na loja e colocar – não tem valor nenhum. Para muita gente, o sucesso é chegar ao pódio, mas só o fato de estar lá, participar da abertura, ir à Vila Olímpica já te faz se sentir grandão.
Qual o momento mais marcante em Olimpíadas?
A minha primeira edição de Olimpíadas (Barcelona 1992) foi marcante, porque briguei muito por isso. Imagina uma atleta de mais de 30 anos que lutou a vida inteira para ir aos Jogos. De repente, ela se vê dentro de um estádio olímpico, desfilando pelo seu país. Lá estão três tenores cantando (José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti), e um cara pega um arco e flecha e acende a pira olímpica. Até me arrepio quando falo. Nunca vi um negócio igual. Ficava toda boba olhando a flecha chegar à pira. Aquela cerimônia de abertura me fez perceber que eu era importante.
Em Atlanta 1996, você chegou a imaginar que ganharia a prata? Como foi a sensação da equipe ao ir ao pódio?
Eu já tinha parado (de jogar), tinha acabado de ter o João Victor. Ele tinha cinco meses, e eu estava em uma final de Olimpíadas. Foi muito dolorido, difícil de entrar em forma. Mas consegui chegar lá e ainda subi ao pódio. Quando fomos jogar contra os Estados Unidos na final, estava muito feliz, realizada aos 36 anos. Nem imaginava ir aos Jogos e já estava com medalha garantida. Fizemos o máximo que podíamos. Quando acabou, vibramos demais. Não choramos. Estávamos felizes, porque era uma medalha de prata. Para mim, foi ouro.
Como foi disputar as Olimpíadas com um filho tão pequeno? O João estava em Atlanta?
Foi uma escolha muito difícil. Precisei tirar o meu filho do peito, porque não tinha como treinar com leite. Quando o João Victor chegou às Olimpíadas, estávamos eu, o pai e a babá. Ele era o mascotinho, a diversão da equipe. Viajávamos, e ele ia junto. Todo mundo queria pegar, brincar. Doeu muito ter que me separar do meu filho – foi a primeira vez em que fiz isso –, mas foi por uma boa causa.
“Quando chegamos à porta da Vila Olímpica, o João não pôde entrar, e aí precisei fazer uma escolha: entrar com as outras jogadoras ou ir para o hotel com o meu filho. Escolhi estar com a equipe, porque, naquele momento, isso era muito importante.”
Como é a sua troca com o João Victor? Lembra dos tempos de atleta, dá conselhos?
Sempre achei que os pais precisam tomar muito cuidado para não atrapalhar os filhos. O João está pronto, sabe o que precisa fazer. Se ficar colocando pressão demais em cima dele, pode atrapalhar. Eu não me meto. Nas primeiras Olimpíadas dele, no Rio de Janeiro, o chamei para conversar: ‘João, agora não é a sua mãe que está falando, quem está aqui com você é uma ex-atleta, medalhista olímpica’. Expliquei como funcionava a Vila, por exemplo. Se percebo que tem alguma coisa que não está me agradando, entro e falo. Caso contrário, fico na minha, tranquila.
Você já participou das Olimpíadas nos papéis de atleta, comentarista e agora mãe. Como é assistir ao João nos Jogos?
Eu dou uma de durona, mas já desabei durante um jogo de basquete do Brasil (na Rio 2016). Estava na arena, comentando. Antes de começar a partida da seleção, João entrou para competir, e eu não estava lá para vê-lo. A produtora jogou um celular na minha mão para eu assistir pelo globoplay, e comecei a chorar ao vivo. Não conseguia falar. Se ele vai ganhar uma medalha ou não, isso pouco me importa, mas quero ele feliz.
Qual é a sua projeção para a participação da seleção masculina de basquete em Paris?
Fiquei muito entusiasmada com o último jogo da seleção no Pré-Olímpico. A chave do Brasil em Paris não é tão fácil. Todo mundo que chega às Olimpíadas sabe jogar basquete. Contra a França, vai ser muito difícil ganhar. Quase impossível seria somente contra os Estados Unidos, o Dream Team. O jogo-chave será contra a Alemanha. Estou muito esperançosa. Quero entender como estarão as outras equipes, mas, além de comentarista, sou torcedora também. Estou torcendo muito pelo Brasil e tenho esperança pelo último jogo que vi da seleção. Acho que ganha do Japão e da Alemanha, passando para a próxima fase.
Como você avalia os momentos tão diferentes das seleções feminina e masculina?
Sou uma ex-atleta e comentarista que jamais vai criticar as jogadoras. Torci muito e acho que a seleção feminina não mereceu estar nas Olimpíadas, não foi bem no Pré-Olímpico. Culpo sempre a gestão. O que não tem é um bom projeto para que as atletas possam aparecer daqui a 10 anos, taticamente e tecnicamente fortes. Do jeito que está indo, vendendo o almoço para pagar o jantar, não vai dar certo. Muitos jogadores do time masculino estão fora – na NBA, na Europa. O feminino tem três jogadoras na WNBA, que são muito legais, e não podemos desperdiçar a oportunidade de aproveitar essas meninas.
Hoje, a seleção feminina está sem técnico, e a masculina trouxe o croata Alexandar Petrovic para a disputa do Pré-Olímpico. Qual é a sua visão sobre um estrangeiro assumir o comando da equipe feminina?
Para trazer um técnico de fora, é preciso dinheiro. Não tenho nada contra treinadores estrangeiros. Se você é bom, não importa de onde vem. Qual é o problema de ter um técnico que não seja brasileiro aqui? Precisamos de alguém capaz de levar o basquete feminino lá para cima. Agora, para que isso ganhe continuidade, tem que ter um projeto. Não adianta só trazer para uma competição e depois mandar embora. Quando eu fui diretora da CBB, trouxe um técnico de fora (o espanhol Carlos Colinas). Naquela época, até tinha dinheiro, por causa das Olimpíadas do Rio. Se eu fosse presidente, a preocupação hoje seria montar um projeto bacana, trazer dinheiro e esperar resultados em médio e longo prazo. Eu quero comentar jogo de basquete feminino do Brasil, ver o time ganhando.
Você falou sobre a necessidade de valorizar as jogadoras brasileiras que estão na WNBA. Como avalia a Kamilla Cardoso, terceira escolha do último Draft da liga americana?
Eu acho a Kamilla uma excelente jogadora. Temos que agradecer por ela estar bem na WNBA. Mas tê-la sozinha não vai adiantar. Precisamos de atletas para passarem a bola para ela, como tínhamos a Paula passando para Marta e Alessandra. O time tem que ser mais homogêneo. E se a Kamilla sofrer uma lesão? Como faz? Você precisa construir uma equipe. E constrói se fizer amistosos, viagens internacionais desde a base, desde os 15 anos. Não adianta ter só uma, duas jogadoras. Nós, eu e a Paula, demoramos muito para sermos campeãs do mundo. Só começamos a ganhar títulos em 1991, quando entraram Janeth, Alessandra, Marta. Ali se formou um time mais homogêneo. Hoje, a seleção masculina é um time muito homogêneo. Você tira um jogador, e o outro que entra também é bom. Por isso, estou confiante de que vai se sair bem lá na frente.
Em 1993, você e Paula se uniram pela única vez em clubes e conquistaram o Mundial pela Ponte Preta. Como foi essa experiência?
Nós sempre tivemos uma rivalidade muito grande, mas isso é bom para o basquete. Quando eu estava no final da carreira, pensei ‘vou jogar no time da Paula’. Acho que a escolha não deu certo, porque ganhávamos tudo, e ficou uma coisa muito estranha. Não perdíamos. Não tinha mais aquela sensação do embate entre nós. Depois, ela voltou para Piracicaba, eu continuei na Ponte Preta.
O clima de rivalidade ajuda no esporte?
Óbvio. Essa coisa da concorrência, da rivalidade, fazia com que a torcida lotasse o Ibirapuera e ainda ficasse gente de fora. Em vários lugares, tinham que colocar telão fora dos ginásios para quem não conseguia entrar. Mas aí temos que levar a rivalidade para o lado legal, nunca para a inimizade.
Como torcedora, é difícil lembrar de tudo que foi vivido e ver que hoje o basquete sofre para se manter competitivo no Brasil?
Sofre, sofre bastante. Não tem mais público como naquela época, infelizmente. As pessoas querem ver cestas, shows, vitórias. O público é o menos culpado em relação a isso.
“Os jogos entre mim e a Paula eram decididos no final, eram espetáculos empolgantes, eletrizantes. O pessoal saía de lá com taquicardia. Gostaria de ver hoje o basquete feminino com uma estrutura sensacional, um técnico maravilhoso.”
Por que lá atrás a visibilidade do basquete era diferente?
Na nossa época, surgiram ídolos. É preciso que haja ídolos. Por exemplo, na ginástica, surgiu a Daiane dos Santos, agora a Rebeca (Andrade). Por que se fala do skate? Porque tem a Rayssa Leal, que está ganhando. O Isaquias (Queiroz) na canoagem também. O vôlei sempre ganha uma medalha. As pessoas querem se emocionar, gritar. Se chega lá e só toma porrada, eu desligo a televisão e vou embora. Tem que ter ídolo. Para ter ídolo, precisa ter projeto, planejamento.
Você também integra a Comissão de Atletas do Comitê Olímpico do Brasil (COB). Como é o trabalho desenvolvido pelo grupo?
Antigamente, o presidente de uma confederação ficava lá até morrer. Hoje, se você recebe dinheiro do governo, é exigida uma contrapartida: o mandato será de quatro anos à frente da confederação, e haverá uma reeleição. Depois, terá que sair. E o atleta ganhou força, porque tem direito a voto. Nós temos um terço dos votos para presidente do Comitê Olímpico, para presidentes de confederações. Toda confederação deve ter uma comissão de atletas, é obrigatório. O COB também. Ainda é uma coisa nova, e o atleta precisa aprender a parte de política, tem que entender quais são os direitos e deveres dele e quais são os direitos e deveres do seu presidente. A partir disso, cobrar. Não interferimos nas gestões, mas, se há algo errado e o atleta não consegue resolver junto à sua confederação, ele nos procura, e vamos em cima.
De que forma você avalia o panorama do esporte olímpico brasileiro hoje, perto dos Jogos de Paris?
Acho que o esporte olímpico brasileiro está em evolução, mas nossa preocupação ainda é profissionalizar e cobrar as confederações, para que tenham uma gestão mais clara. Muitas vezes, a maneira de classificação fica confusa, por exemplo. Recentemente, tivemos três competidores do atletismo que conseguiram índice olímpico, mas não poderão ir às Olimpíadas, porque, pela regra da Federação Internacional, precisavam ter feito três exames antidoping, o que não aconteceu. E eles estavam à disposição. Foi uma falha. Imagina o sentimento desse atleta, que conquistou a vaga, de não poder ir, porque houve um erro.
Essa evolução nos bastidores já pode resultar em bons resultados nas Olimpíadas de Paris? Ou fazem parte de um projeto em longo prazo?
Precisamos ver que existe a intenção de melhorar. É necessário ser profissional, gestor. Antigamente, era ‘eu amo basquete, eu amo vôlei’. Mas não é só amor, tem que ter gestão. Você pode amar, mas precisa ser gestor também. Nunca teve gestão na minha época, e não vejo algo que dê orgulho agora também.
Como uma mulher no esporte, de que forma você enxerga o panorama geral da participação feminina?
Eu fui ver uma atleta do Brasil ganhar a primeira medalha de ouro olímpica em 1996, no vôlei de praia, com a Jacqueline (Silva) e a Sandra (Pires). De lá para cá, evoluímos muito. Hoje, temos mais mulheres participando das Olimpíadas (na delegação brasileira) do que homens. Mas não era assim na nossa época. Lutamos muito e precisamos continuar lutando, porque ainda tem muita coisa para conquistarmos. Nós temos que jogar, mostrar serviço, trazer patrocinadores. E estamos fazendo isso.
FONTE: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/07/18/hortencia-cre-em-podio-do-basquete-brasileiro-em-paris-um-sonho-palpavel.ghtml