Todas As Flores e um mercado que precisa entender que fã de novela não é burro

Grande promessa do streaming para o futuro das telenovelas, a trama de João Emanuel Carneiro terminou em meio a absurdos inexplicáveis.

Vou começar fazendo uma pergunta honesta: o que dá ao público a ideia de que uma novela é “boa”? Poderíamos tentar responder isso construindo uma fórmula a partir dos maiores sucessos dos últimos 50 anos; e essa fórmula tem dois elementos uníssonos: vilãs fortes e uma história de vingança. Os nomes que mais aparecem nas discussões sobre o assunto na internet guardam essas semelhanças compartilhadas. A vingança de Raquel contra a filha (Vale Tudo); a vingança de Tieta contra Santana do Agreste; a vingança de Maria do Carmo contra Nazaré (Senhora do Destino); a vingança de Nina contra Carminha (Avenida Brasil)…

As novelas são construídas todas em torno da mesma base, com variações entre si. Às vezes não tem vingança, mas tem superação, paternidade perdida, troca de lugar entre gêmeos, triângulos amorosos e empresas alternando presidentes. O DNA do gênero exige a repetição, se pauta na confortabilidade, não quer reinventar a roda, mas precisa contar com o mínimo de frescor entre obras. Você pode até tentar mudar a estética, mas se quer escrever novela, vai abraçar recorrências. Novela é mimese, mas não é porque copia a si mesma que não tem responsabilidade estrutural.

Avaliando as obras das 21 horas desde que a produção de títulos recomeçou no Brasil pós-pandemia, não é difícil perceber o que eles têm em comum. Amor de Mãe começou desafiando a estética. Era uma novela escura, com filtros crus, que se passava em locações sem glamour e tinha cenas longas, preocupada com descrições emocionais mais exploradas. Quando retornou do hiato forçado, voltou com vários capítulos a menos do que estava planejado, picotou-se sem cautela e deformou-se. Ninguém conseguia acompanhar a forma como os personagens iam do 8 para o 80 no espaço entre duas cenas; e o texto – que poderia ser preservado – parecia uma cartilha de obviedades.

Em Um Lugar ao Sol o problema se agravou, uma vez que sua autora planejou tudo antes mesmo das gravações começarem. Uma história de gêmeos trocando de lugar que fez elipses em tudo que era importante: o jeito que um virou o outro e depois, como esse farsante foi descoberto. Além desse absurdo, uma trama sobre etarismo que confirmava problemas de etarismo e uma trama sobre gordofobia que era gordofóbica. O alívio só veio em Pantanal… Mas, Pantanal nem era original; era um eco do sucesso de outrora. Uma boa cópia-carbono.

Travessia veio para contar uma novela sobre fake news sem fake news; sobre deep fake news que não ficavam nem na superfície; sobre tecnologia do futuro, metaverso, inteligência artificial, robôs e realidade virtual… e terminou sendo uma novela sobre um exame de DNA explicado numa panela de brigadeiro. Era como se não houvesse nem mesmo a vontade de pesquisar para saber que o photoshop de uma foto pode ser desmascarado em 5 minutos. Parecia brincadeira.

Quando Todas as Flores exibiu seu primeiro trailer era como se a esperança estivesse de volta aos corações de todos. João Emanuel Carneiro escreveu Avenida Brasil e teve sucessos relativos em outras tramas; sabia falar sobre vingança e sabia escrever vilãs fortes. Não é à toa que Leticia Colin e Regina Casé foram os destaques em comum de praticamente qualquer análise sobre a novela. Era um ótimo sinal… A primeira novela do streaming (desconsiderando Verdades Secretas, que tinha linguagem de minissérie) poderia abrir as portas para abordagens que, ainda que honrassem o gênero, teriam abertura para ousar (ou mesmo simplesmente fazer o básico, bem feito). Contudo, o resultado foi um devaneio sem controle. A novela não tinha nenhuma preocupação com processos, só com resultados.

Jardim Secreto

Vou pedir licença para exemplificar a discrepância entre Todas as Flores e a simples noção de planejamento, usando Manoel Carlos como base. Mesmo que ele tenha escrito aberrações machistas e esteja sendo reprisado com Mulheres Apaixonadas (a novela mais cheia de fetiches masculinos da história); existe em sua obra um senso de controle narrativo que é colossal.

Em Por Amor, lá no meio dos anos 90, ele queria contar a história de uma mãe que trocava o bebê vivo que havia tido pelo morto que sua filha tivera. Assim, a moça criaria o irmão como filho e Helena – a protagonista – veria o filho crescer como neto. Para arranjar isso era preciso ser engenhoso ou o público não acreditaria na virada. Então, ali pelos primeiros 50 capítulos da novela, Maneco preparou o terreno. Fez Eduarda ser descrita como frágil, a fez ter um aborto espontâneo, preparou o espectador para que ele compreendesse a morte do recém-nascido no dia da troca. Sobretudo, deixou claro que a moça não sabia lidar com traumas e era muito insegura.

Grávidas juntas, mãe e filha precisariam parir no mesmo dia para que o enredo desse certo. Mas, como fazer a troca dentro de um hospital, com tantas testemunhas? Maneco criou o médico César, que tinha uma dívida de gratidão com Helena e era apaixonado por Eduarda. Ele se sentiria obrigado a executar o plano. Os partos aconteceram fora do dia planejado e uma chuva torrencial chegou ao Rio de Janeiro, impedindo um dos pais de pegar o voo de volta e obrigando todos os outros personagens a permanecerem em casa.

Diante desse cenário, quando Helena resolve fazer a troca, o espectador não é capaz de encontrar uma só ponta solta. E o melhor disso tudo? Era um bom planejamento, sem a falsa eloquência de explosões, tiros e organizações criminosas que disfarçassem o descuido com carpintaria textual básica.

Todas as Flores de um jardim nefasto

É bem verdade que ficamos tão empolgados com Todas as Flores que fechamos os olhos para problemas que estavam ali desde o começo. A gravidez de uma começava junto com a outra, mas os bebês nasciam em períodos estranhamente diferentes… Um negócio de milhões com a venda de um perfume era fechado num banco de praça, depois que uma estranha de peruca se aproximava. Isso sem falar no concurso de beleza que não terminava nunca, que era um verdadeiro estouro; e que não atrapalhava Diego, que fingia ter duas identidades sem risco nenhum de sair numa nota ou numa cobertura jornalística. Explicações? Nenhuma.

O projeto de Todas as Flores nasceu com mais de 150 capítulos, mas após a cúpula da emissora decidir passar Travessia na frente da fila, a novela de João Emanuel foi encurtada para 85 capítulos e foi toda gravada antes do lançamento no streaming da casa. Ele não teria como analisar as reações para tentar corrigir cursos… Contudo, parece cada vez mais que essa é uma desculpa ultrapassada. Considerando o descaso dos autores do horário nos últimos anos com questões de coerência básica, é provável que nada tivesse mudado.

É evidente que João Emanuel e sua equipe sabiam onde queriam chegar. Os planos para cada personagem central eram perceptíveis. O problema estava nos processos para chegar onde se queria; problema esse que estava também nos títulos que vieram da pandemia para cá (e que já foram citados nesse texto). Maíra (Sophie Charlotte) precisava ser descrita como uma mocinha forte, então o autor decidiu que ela não iria pedir ajuda ao amado. Só que o filho dela estava sequestrado, o amado era rico, tinha recursos e conhecia os envolvidos. Não havia nenhuma razão minimamente válida para que ela se recusasse a pedir ajuda.

Maíra, aliás, foi o centro da hecatombe narrativa. Prometeu uma vingança que não veio, voltou a enxergar e ninguém percebeu, cometeu crime de tráfico humano e não perdeu a guarda da criança, fugiu da cadeia sem esforço e ficou em casa, recebendo visitas constantes, sem que a polícia jamais fosse procurá-la. Terminou emulando um perdão capenga diante de uma Zoé que mudava de opinião sobre a filha cinco vezes no mesmo capítulo.

E as loucuras continuavam… Mauritânia (Thalita Carauta), que era uma mulher vivida e esperta, criada na malandragem, assinou papéis sem ler; Rafael (Humberto Carrão) promoveu resgates rocambolescos; tivemos uma incidência inacreditável de tiros no ombro e João Emanuel entubou quase DEZ atores pretos em um núcleo popular sem nenhuma função, nenhum apuro, nenhuma importância. A busca pela diversidade nos papéis de destaque das nossas novelas está sendo reconhecida no mundo todo. Que tristeza ver a produção desprestigiar ótimos atores segregando-os a uma terceira categoria de personagens, que nem entreter poderiam, tamanha fragilidade do texto. Soou muito mais como uma obrigação, uma imposição burocrática; e isso é muito desrespeitoso.

No último capítulo o descaso com coerência e boa escrita chegou ao ápice. Não só os acontecimentos eram totalmente sem sentido (aquele julgamento parecia um julgamento de festa junina) como a escrita não se esforçava em nada para ter substância, para ter o mínimo de fé cênica. A superficialidade era tamanha, que atingia tudo em volta, inclusive os atores. Embora tenha sido celebrada, Regina Casé poucas vezes teve escopo para desenvolver Zoé (geralmente nas cenas de humor, quando ela odiava Maíra). Colin era uma força de carisma, com um timing de comédia sofisticadíssimo, mas foi apagada do último capítulo e reduzida ao pó do vilão que termina batendo carteira.

É inacreditável que o mercado criativo das telenovelas – e aqui me direciono à dominância da produção global – não tenha percebido de uma vez por todas que o espectador não é burro. As novelas são feitas pensando na massa distraída que deixa a TV ligada enquanto passa roupa. Mas, a novela do streaming será assistida por quem ama o gênero e por quem pauta o alcance que esses títulos terão nessa elusiva escala de grandes sucessos. A gente ama uma bagaceira teledramatúrgica, mas a gente ama ainda mais quando ela é feita sem subestimar a nossa inteligência. Novela tem códigos populares, mas é uma história sendo contada, como qualquer outra. E mesmo o cidadão mais simples, diante de um causo sem raízes bem fincadas, desconfia da procedência dessa prosa.

Nós não somos burros… e nem – que ironia – cegos.

Está definido…

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 … que desse trabalho de João Emanuel ficou a lembrança de boas cenas de Letícia Colin e de um começo brilhante para Mauritânia. João sabe criar personagens cheios de apelo e isso ficou muito claro nos primeiros capítulos da novela.

 Está a definir…

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 … o que podemos esperar de Terra e Paixão, que se tornou agora – mais que nunca – a promessa de um sucesso ainda não visto nos últimos anos. Na próxima coluna vamos falar dela. Espero vocês.

FONTE: Omelete (https://www.omelete.com.br/series-tv/todas-as-flores-e-um-mercado-que-precisa-entender-que-fa-de-novela-nao-e-burro)