A última comparação provável de ser feita para se falar sobre “Spencer”, filme que chega hoje aos cinemas brasileiros, é com “A Maldição da Residência Hill”. Sim, a série de terror da Netflix criada por Mike Flanagan que, no fim das contas, é uma narrativa poderosa sobre amor e luto.
Pode até parecer que as duas obras não têm relação alguma, mas elas estão mais próximas do que se imagina.
Enquanto a série da Netflix mascara uma trama sobre amor, dor e luto em um terror sobre fantasmas, “Spencer” utiliza os mesmos tons fantasmagóricos para nos contar sobre a tragédia de Diana (Kristen Stewart) — que é igualmente envolta em amor, dor e luto.
Por isso, quando a princesa navega solitária pelos corredores frios e gigantescos da Casa de Sandringham, em Norfolk, é fácil se lembrar dos fantasmas metafóricos que perturbavam a família Crain na série.
O filme se passa durante um feriado natalino, quando Diana se une aos filhos, ao marido e à Família Real para o tradicional fim de ano da realeza. Com o casamento prestes a desmoronar, ela se vê cada vez mais presa em uma situação claustrofóbica.
O diretor chileno Pablo Larraín continua o seu estudo de personagem iniciado em “Jackie” (2016) e mergulha com ainda mais profundidade em uma espécie de psicodrama que pode não ser o que muitos esperavam a princípio, considerando o trailer e os materiais de divulgação.
Mas ele se resguarda. Logo no início da projeção, uma cartela avisa: “Uma fábula baseada em uma tragédia real”. Ou seja: não espere um filme literal.
O teor fantástico abre caminho para que Larraín e o roteirista Steven Knight abordem as dores de Diana com toques místicos. Passagens oníricas se misturam com os poucos momentos de alegria em que ela brinca e conversa com os filhos, ou corre do salão de jantar para o banheiro, onde se debruça sobre um vaso sanitário sem muito pudor.
Aos poucos, o que é realidade e o que é fantasia vai deixando de ter importância, e a pergunta que se abre é maior: a tragédia, afinal, é sua vida ou sua morte?
Um pouco dos dois.
Há muitos aspectos da vida da “Princesa do Povo” retratados à exaustão nos últimos tempos na mídia. De “The Crown” aos muitos documentários e revisionismos, a obsessão da imprensa por Lady Di parece nunca dormir.
Em “Spencer”, Larraín e Knight não se prendem a detalhes que já circulam em outras obras recentes. Pelo contrário, eles se fortalecem sobre o que já existe sobre ela na cultura popular para encenarem uma tragédia contida.
O filme não se dispõe a ser uma biografia completa de Diana, e isso seria desnecessário. Trata-se de um olhar um pouco mais calmo sobre a complexidade dos demônios que a perturbavam naquele momento, à beira do fim do casamento. Aquele lugar é ainda menos sua casa do que fora antes, e por isso ela insiste em se conectar com a Diana que existia antes de Charles.
Não é por acaso que o filme leva seu sobrenome de solteira.
Nos três dias em que se passa a narrativa, vimos uma Diana enclausurada, solitária, e a tragédia parece tomar uma forma mais clara. Vivos, os fantasmas que a assombram são os calados membros da realeza, que mal lhe dirigem a palavra durante as quase 2h de filme.
Embora a história se passe em 1991, o acidente que vitimou Diana em 1997 paira como uma sombra indesejada, informando a narrativa e a necessidade de libertação que toma a protagonista aos poucos. O clima sempre sombrio e gelado do gigantesco palácio serve como um tipo de complemento ao seu estado mental.
A fantasia atinge seu ápice quando Diana projeta sua própria figura na de Ana Bolena, segunda esposa de Henrique VIII — a que causou a separação entre Igreja e Estado na Inglaterra e foi posteriormente decapitada, antes de o rei se casar com Jane Seymour (a terceira de um total de seis esposas e, supostamente, a única que ele amou de verdade).
Populares, descartadas e eternamente lembradas. De fato, elas compartilham um legado de transgressão que as perseguiu até o fim.
É dentro deste escopo que “Spencer”, assim como “A Maldição da Residência Hill”, se torna uma história sobre laços rompidos e uma família despedaçada pela dor. Reais ou literais, os fantasmas são projeções de inseguranças individuais nas duas histórias.
Nem sempre as metáforas que o filme usa são as mais sutis, mas dificilmente um espectador não sairá impressionado da sessão.